Ensaio sobre Literatura e Alteridade

Há quem diga que o escritor ou a escritora é um ser humano extremamente narcisista. Ele precisa observar os fatos do mundo, apreendê-los, transformá-los em linguagem, e retransmitir sua perspectiva estritamente pessoal para o leitor. Leio por aí que as idiossincrasias, os maneirismos, a fetichização da palavra escrita auxiliam no desenvolvimento deste “sujeito” pensante, uno, soberano, a interpretar a realidade.
Fala-se muito do narcisimo do escritor português António Lobo Antunes, por exemplo: vira e mexe o autor põe um alter-ego seu como protagonista ou personagem de seus romances. No mais recente livro, o (diga-se de passagem) genial Sôbolos rios que vão (Publicações Dom Quixote, 2010), o autor volta a colocar o seu nome num personagem que passa por uma situação dramática: sofre de câncer e tem que enfrentar o medo da morte de frente. É publicamente notório que o autor empírico, António Lobo Antunes, passou pelo drama do tratamento de um câncer, e que isto muito angustiou o escritor. Mas daí a dizer que o livro é a sua autobiografia, parece-me um equívoco. Mas por ora, retornemos à questão do narcisismo. Explico em breve onde está o equívoco.

Eu não poderia discordar mais de quem acusa os artistas das letras de intenso narcisimo ou egoísmo: a literatura é um radical exercício de alterização, talvez seja o exercício de alterização por excelência. Justifico: o simples ato de criar uma realidade linguísitica para além do fato observado, somado à posterior retransmissão do escrito, implicam numa série de movimentos em direção ao exterior do ego do artista, de modo que o seu “eu” se dissipa, culminando na total aniquilação do ego. Vou tentar desenvolver mais.
O simples fato de o escritor ter uma história para contar é o primeiro movimento de alterização em literatura: para escrever, é necessário, antes de mais nada, imaginar-se outro. É necessário habitar este outro da linguagem e criar ficções, é necessário criar a mente de um outro, as personagens, e criar todas as suas interações. Devo dizer que mesmo os gêneros auto-proclamados não-ficção não podem escapar ao processo de alterização. Se alguém escreve a sua própria autobiografia, está saindo de si para criar uma narração, um personagem baseado em si próprio. Se alguém clama que devemos averiguar e nos ater a “fatos históricos concretos”, esquece-se de que mesmo a história é uma “estória” (apenas para resgatar a clássica e datada distinção): a história também configura-se uma arte narrativa – o tal fato concreto já deixou de ser no instante em que aconteceu – resta-nos narrá-lo. Posso invocar o famoso aforismo de Nietzsche aqui: “não há fatos, somente interpretação”. Depois do trabalho com a linguagem e da criação do universo ficcional, transmite-se o “texto-tecido” para o leitor. Segundo movimento de alterização: agora é o leitor quem participa do movimento de alterização entrando na cabeça do escritor, habitando a sua pele, interpretando o que os narradores dizem e criando sentido.
O terceiro movimento de alterização consiste na capacidade da arte de nos transformar enquanto pessoas. Eu passo a ser um outro (aqui, estou resgatando e distorcendo o famoso aforismo de Rimbaud). A obra acessada poderá (ou não) nos modificar, nos influenciar de alguma maneira. Mas ela certamente nos convidou a sairmos de nós, a deixarmos de ser um pouco nós mesmos e nos convidou também a desenvolver um pouco de empatia. Embora eu utilize a primeira pessoa neste texto, você, leitor, agora habita o meu pensamento, e segue a minha argumentação. Neste pequeno instante da leitura, você está na minha cabeça, na minha imaginação, na forma como uso a linguagem para tentar te alcançar, te tocar. Agora que acabei a frase anterior, o instante da criação terminou, o fato perdeu-se. Parei de escrever e olhei pela janela. Retornei e transmiti o ocorrido. Ele se foi. E você aqui, acompanhando. Voltemos à tentativa de teorizar, agora.
Gostaria de ressaltar que empatia e alteridade são coisas distintas, mas a primeira conduz à outra: enquanto a empatia consiste em se identificar com o outro (ou seja, é ainda a nossa perspectiva que está em vigor), a alteridade consiste neste difícil exercício que implica em aceitar esta “outridade”. Alteridade é o outro em todo o seu mistério, inacessível e belo, incompreensível e inapreensível. Alteridade pouco tem a ver com interpretação, firulas linguísticas, entendimento ou compreensão. Alteridade consiste em aceitar este inapreensível mistério que o outro simplesmente é. 

E retorno ao escritor português Lobo Antunes agora, porque foi o seu mais novo romance que me motivou a escrever este pequeno ensaio sobre literatura e alteridade. Há uma passagem do romance onde o narrador, Sr. António Antunes, afirma que “há uma orfandade nas coisas”. Gosto de pensar a “linguagem mesma” como órfã. Gosto de imaginar que, se a linguagem é este tecido desprovido de essência, de sentidos ocultos, somos livres para criar com ela. Claro que há os puristas que vão dizer que as palavras carregam significados pesados, estritos. Acho até que tais puristas têm razão ao querer, por assim dizer, punir quem faz mau uso de determinadas palavras, mas o fazem pelo motivo errado. Explico: uma amiga Sul-africana, negra, que veio para o Canadá há alguns anos atrás para viver uma vida diferente do apartheid do seu país natal, certa vez me disse que um homem branco que usasse a palavra nigger tinha que ser repreendido pelo uso da palavra, devido à série de atrocidades e brutalidade contra os negros que a palavra carrega. Eu também penso que o homem branco de classe média, nos termos de Paulo Freire, o “opressor”, que utiliza o termo racista deve ser repreendido e punido por usar o termo, mas não porque a palavra carrega consigo a série de atrocidades. A palavra não carrega nada. A palavra não é nada além de uma ferramenta. Não fossem as arbitrariedades e o cunho racista, a palavra poderia ser usada em um poema, afinal, ela rima, tem um som interessante. Mas é exatamente pelo fato da palavra não possuir uma essência, é exatamente pelo fato de a “palavra-em-si” não possuir uma verdade soberana, que o homem branco de classe média deve ser repreendido pelo uso racista da palavra: afinal, só temos o jogo de significados e significantes (não essencial, ou metafísica) que a palavra carrega, e só temos a pessoa (que também não possui uma essência metafísica por trás do seu nome) que emitiu a palavra – e ao abrir a boca, somos responsáveis pelo modo como usamos a linguagem. E sim, é exatamente pelo fato de a palavra não possuir uma essência verdadeira ou metafísica que temos que ser cobrados pelos seus significados. A comunicação é um constructo, um jogo admirável. A essência das palavras é apenas o jogo de significantes. A linguagem-tecido, real, aqui, agora.
Todo este jogo, esta elucubração, esta tentativa de sair de si em direção ao “ato” da comunicação aplica-se a qualquer manifestação artística. Penso que o cineasta, o pintor, o escultor, etcetera, passam por estas diversas camadas de alterização para se afirmarem por um instante que seja na existência. É paradoxal que no mundo de hoje (aqui, peço perdão ao leitor pelo uso um tanto abrangente de “o mundo de hoje”) haja tanto individualismo, narcisismo, tanta conversa sobre o tal self – sempre somos nós, sempre sou eu, eu, eu – há tanta conversa sobre a nossa própria visão do mundo, e nos encarceramos, nos fechamos, nos limitamos a ver os outros e a realidade como ela é.
O vazio da linguagem e o fato de só termos esta vida e o modo como usamos as línguas que sabemos, deveria, ao contrário, nos despertar esteticamente para um gosto pelo absurdo, pelo paradoxo, pela vida, ainda que (e talvez exatamente porquê) efêmera. Afinal, é a vida, ela mesma, o nosso maior paradoxo: que sentido você pode inferir do movimento que vai entre o seu nascer e morrer, sabendo que, grossíssimo modo, nascemos apenas para morrer? Nenhum, certo? Não há uma relação de causa e efeito. Então criamos sentidos, nos comunicamos.
Machado de Assis certa feita disse que a arte é consolo físico para um mal metafísico. Encerro aqui esta reflexão convidando o leitor a fazer da vida a sua obra de arte, o seu consolo. E a tentar sair de si, ou pelo menos tentar. Afinal, a aventura por si só é essencialmente solitária. Precisamos criar sentido para a falta de… sentido. Façamos boa arte, então!


Manuel Carreiro é escritor e professor canadense (de origem Luso-brasileira) nas áreas de Filosofia, Letras e Educação. Atualmente é doutorando em Filosofia da Educação e professor auxiliar na Simon Fraser University, universidade pública em Vancouver, no Canadá. Ministra os cursos “Literatura para crianças” e “Problemas sociais na Educação”.

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