PEDAGOGINGA
ARTIGO:
PEDAGOGINGA
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Viver significa
completar-se em outro, desde o metabolismo – que já é troca – até as relações
sociais, os laços de estreita intimidade. Tudo o que existe é potência:
particularmente, todo vivente é uma quantidade de força, é o que Aristóteles
chamava enérgheia, Spinoza chamava conatus, Freud chamava libido e Nietzsche,
vontade de potência. No ser humano a potência se manifesta como dinâmica
expansiva. Como ressalta Platão, no Banquete, a vida, em Eros, é filha de Penia
– “penúria” – e de Porós – "abundância". Para saber lidar com essa
dinâmica dos contrários que compõe a condição humana em sua complexidade, viver
requer "pedagoginga", como diria o escritor e educador Allan da Rosa.
Entre a tensão e o tesão, somos potências finitas, “uma vida dissipada”. Para
evitar o desperdício de energia, é preciso calcular a nossa potência, ter noção
do que podemos e não podemos fazer e, portanto, do que devemos buscar e do que
convém abandonar.
Para fazer essa
importante avaliação, aconselha Santo Agostinho: “não busques fora, entra em ti
mesmo: no interior do homem habita a verdade”. Aqui, o entrar em si mesmo não
coincide com o fechar-se de maneira ciumenta no próprio eu ou com o
interessar-se só pelos próprios problemas: significa, rigorosamente falando,
fazer de si o problema por excelência. O autoconhecimento, como ressaltou
Sêneca, é a oportunidade reflexiva de que dispomos para “fugir da escravidão de
si”. Somente compreendendo-se como momento de uma natureza maior, é possível
alcançar a nossa justa dimensão – nem mais nem menos –, calcular o nosso
efetivo peso e valor, definir com maior exatidão as nossas competências e
habilidades.
A finalidade da
educação é, segundo Aristóteles, a felicidade ou o bem. O bem, para ele, está
no funcionamento da parte mais elevada da natureza humana, ou seja, a razão. O
“bem do intelecto” e o “bem do caráter” devem assim andar juntos, visando à
construção de um universo mais harmônico para a vida em plenitude. Curioso
notar que o termo “mundo” tem a mesma raiz da palavra latina mundus, que indica
a limpeza, a nitidez; o mesmo significado tem a palavra grega kósmos, de onde
vem cosmético, decoro, elegância. Ter uma imagem do mundo significa pensar a
realidade como um conjunto ordenado sem o qual seria irrepresentável e nem
seria possível perceber a desordem. Portanto, é na aposta com o enigma da
existência, no empenho pela verdade que os seres humanos podem encontrar as
razões da sua vida e vivê-la bem.
Alimentado pela
sabedoria popular, prefiro acreditar que a educação é a arte de construir um
mundo bonito pra daná! Reconheço a presença da razão muito mais como “cócegas
mentais” que nos divertem à beça. Fico menos com a idéia de razão como guia à
formação do caráter para fazer coro às palavras do professor Eduardo Gianetti,
em A ilusão da alma: biografia de uma idéia fixa (2010): “a curiosidade está
para o conhecimento como a libido está para o sexo. Não há um sem o outro [...]
A dúvida abre um vácuo a ser preenchido; uma carência a ser saciada pela
centelha de uma solução. A inquietação genuína diante de um problema é a
modalidade intelectual do desejo”. Nesse sentido, compreende-se melhor que a
emoção reduzida ao prazer já é aquela separada da razão, perdendo o sentido de
importância pessoal e social dos relacionamentos.
O crítico da
erudição enciclopédica e preciosista, o professor Guy Claxton, em O desafio de
aprender ao longo da vida (2005), corajosamente disse: “inteligência aumenta se
pensamos menos”. A aprendizagem humana está mais para o modo de ser da
tartaruga do que da lebre. Acumular informações não é propriamente pensar.
Pensar é fazer coleta seletiva a favor da reciclagem cultural continuada. De
maneira bem humorada, Claxton anda fazendo entre nós o elogio da lentidão,
denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. Pela pressa de viver, as
pessoas estão ignorando as sutilezas do bem existir. Enquanto a delicadeza tem
a ver com a lentidão, a violência tem a ver com a velocidade. Logo, a emoção
não pode ser produzida por atacado, de qualquer maneira, porque tem seu ritmo,
sua espera, sua saudade, e a aprendizagem profunda precisa de ritmo próprio,
para amadurecer com solidez. Por isso, é fundamental perceber o compromisso da
educação com o incentivo da sensibilidade, com “a profundidade corporal da
envolvência”, segundo destaca o sociólogo Pedro Demo.
É com a educação que
enfrentaremos com originalidade e esmero o problema da pobreza material e
imaterial, assunto que foi mote do antológico samba Ratos e urubus, larguem a
minha fantasia (1989), interpretado por Neguinho da Beija-Flor: “Reluziu...É
ouro ou lata/Formou a grande confusão/Qual areia na farofa/É o luxo e a pobreza/No
meu mundo de ilusão/Xepa de lá pra cá xepei/Sou na vida um mendigo/da folia eu
sou rei/Sai do lixo a pobreza/Euforia que consome/Se ficar o rato pega/Se cair
urubu come/Vibra meu povo/Embala o corpo/A loucura é geral/Larguem minha
fantasia/Que agonia... Deixem-me/Mostrar meu carnaval/Firme... Belo
perfil!/Alegria e manifestação/Eis a Beija-flor tão linda/Derramando na
avenida/Frutos de uma imaginação/Leba - laro - ô ô ô ô/Ebó lebará - laiá - laiá
- ô”.
A educação é o
drible da liberdade dado entre as canetas do cárcere. Como bem cantou Martinho
da Vila, no fabuloso samba Onde o Brasil aprendeu a Liberdade (1972):
“Brasileiros irmanados/sem senhores, sem senzalas/e a Senhora dos Prazeres
transformando pedra em bala”. Foi também pelo samba que tivemos um brilhante
resumo de educação no sentido constitutivo que define por excelência seu papel
emancipador. Em 1989, em plena redemocratização, a Imperatriz Leopoldinense
arrepiou o Brasil: “Liberdade, liberdade/abre as asas sobre nós/e que a voz da
igualdade/sempre seja a nossa voz”.
*
Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta
e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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