Cabelo oprimido é um teto para o cérebro - Alice Walker
Talvez os surpreenda saber que não pretendo falar (talvez até o
período de perguntas e respostas) sobre guerra e paz, economia, racismo
ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribulações dos negros ou das
mulheres. Nem sobre filmes. Embora os mais atentos possam ouvir em
minhas palavras a preocupação por alguns desses assuntos, vou falar
sobre algo muito mais perto de nós. Vou falar sobre cabelo. Não se
preocupem com o estado dos seus cabelos neste momento.
Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação. Simplesmente
quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo
cabelo, e espero entreter e divertir a todos.
Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta
crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o
espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns
períodos do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que
se trata de crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos
ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que
encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que
estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que
crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia
da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta.
Geralmente não é uma sensação agradável. Porém, o mais desagradável é
não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de ansiedade que
me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se
manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e
como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.
Com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitos em saber, o
crescimento torna-se um processo consciente e reconhecido. Ainda um
pouco assustador, mas pelo menos compreendido. Aqueles longos períodos,
quando algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração,
sem saber qual será o próximo passo, com o tempo transformam-se em
períodos esperados, pois enquanto ocorrem, compreendemos que estamos
sendo preparados para a próxima fase da nossa vida e que provavelmente
vai se revelar um novo nível de personalidade.
Alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação,
disfarçado em imobilidade. Isto é, isolei-me do grande mundo a favor da
paz do meu mundo pessoal, muito menor. Eu me desliguei da televisão e
dos jornais (um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha
grande família, e da maioria dos amigos. Era como se eu tivesse chegado
a um teto no meu cérebro. E sob esse teto minha mente estava
extremamente inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo.
Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do
meu progresso neste mundo. No relacionamento com a família e os
antepassados eu agira respeitosamente (nem todos concordarão, acredito);
no meu trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que
disponho, tudo que era exigido de mim; no relacionamento com as pessoas
com quem convivo diariamente, eu agira com todo amor que podia encontrar
no meu íntimo, Eu começava também, finalmente, a reconhecer minha
responsabilidade para com a Terra c minha adoração do Universo. O que
mais então eu devia fazer? Por que, quando eu meditava e procurava o
alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros estágios do
crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava agora um
teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho
que eu costumava trilhar, estivesse selado?
Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um
ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para
minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.
Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era
inocente. O problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu
estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão,
ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a
pedra que o ancoraria à Terra. Compreendi que seria impossível continuar
meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma,
impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente
nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a
pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e
monges raspam as cabeças!
Olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! Tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro da terra.
Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei longas
tranças (era moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo
de mulheres coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter
cabelos longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado
(oprimido) a oportunidade de crescer. A jovem que trançava meu cabelo
era uma pessoa que eu acabei adorando - uma jovem mãe lutadora; ela e a
filha chegavam à minha casa às sete da noite e conversávamos, ouvíamos
música, comíamos pizzas ou burritos, enquanto ela trabalhava, até uma ou
duas horas da manhã. Eu adorava o artesanato dos desenhos criados por
ela para a minha cabeça. (Trabalho de cesteiro! exclamou uma amiga,
tocando a teia intrincada na minha cabeça.) Eu adorava sentar entre os
joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã
enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu adorava o
fato do meu cabelo crescer forte e saudável sob as "extensões", coma
eram chamadas as tranças.
Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e
que fazia parte da tradição do penteado dos negros. Eu adorava o fato
de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou
três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os
dias, se quisesse, e não fazer nada mais). Porém, uma vez ou outra as
tranças tinham de ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e
feitas novamente (mais sete a oito horas); também eu não me esquecia das
mulheres coreanas que, de acordo com minha jovem cabeleireira, deixavam
crescer o cabelo expressamente para vender. É claro que essa informação
me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os outros aspectos de suas
vidas.
Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o
cabelo das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. Só então renovei o
conhecimento com suas características naturais. Descobri que era
flexível, macio reagindo quase com sensualidade à umidade. Com as
pequenas tranças girando para todos os lados, menos para onde eu queria
que virassem, descobri que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como
eu! Vi que meu amigo cabelo, tendo recuperado vida própria, tinha senso
de humor. Descobri que eu gostava dele.
Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei
a rir. Meu cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis,
surpreendentes, de parar o tráfego - um pouco parecido com as listras
das zebras, com as orelhas do tatu ou os pés azul-elétrico do mergulhão -
que o universo cria sem nenhum motivo especial a não ser demonstrar sua
imaginação ilimitada. Compreendi que jamais tivera a oportunidade de
apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. Descobrir que ele, na
verdade, tinha uma natureza própria. Lembrei-me dos anos que passei
agüentando cabeleireiros - desde o tempo de minha mãe - que faziam
trabalho missionário nos meus cabelos. Eles dominavam, suprimiam,
controlavam. Agora, mais ou menos livre, ele ficava todo espetado para
todos os lados. Eu telefonava para todos meus amigos no país para
relatar as travessuras do meu cabelo. Ele jamais pensava em ficar
deitado. Deitar de costas, na posição missionária, não o interessava.
Ele cresceu. Ficar curto, cortado quase até a raiz, outra "solução"
missionária, também não o interessava. Ele procurava espaços cada vez
maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado; mas isso era
tudo.
Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer,
ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser
deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como
ele era. O que acham que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um
bônus adicional, compreender Bob Marley como o místico que suas músicas
diziam que era). O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez
minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim. Eu não estaria
mais presa à imobilidade inquieta, eu continuaria a crescer. A planta
estava acima do solo.
Essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo ano. Isso e
saber que enquanto existir alegria na criação haverá sempre novas
criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar
é dentro de nós mesmos. Que a própria morte, sendo parte da vida, deve
oferecer pelo menos um momento de prazer.
Fiz esta palestra no Dia dos Fundadores, 11 de abril de 1987, no Spelman College, Atlanta
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